| Futuro do presenteRets Fausto Rêgo 30.05.2003 A despeito da ausência de figuras muito aguardadas do primeiro escalão do Governo Federal – como o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, e o ministro da Educação, Cristovam Buarque – a 2ª Oficina para a Inclusão Digital, realizada de 27 a 30 de maio, em Brasília (DF), deixou no ar a expectativa de ações concretas do governo brasileiro – com a cooperação da sociedade civil e da iniciativa privada – em busca da universalização do acesso às tecnologias de informação e comunicação e da livre difusão e produção de conhecimento. Nota-se, de fato, um interesse do poder público federal em estimular iniciativas nesse sentido (fala-se, aliás, na possível criação de uma Secretaria de Inclusão Digital). E existe uma orientação política para que se estimule o uso do software livre. Da ampla discussão sobre o tema – nos seminários, painéis e, sobretudo, nos grupos de trabalho temáticos – surgiram as propostas que estão no documento que divulgamos na seção Em Destaque desta edição. Ainda é uma proposta a ser trabalhada e consolidada ao longo de mais uma semana pela comissão organizadora – integrada por Rodrigo Assumpção (secretário-adjunto de Logística e Tecnologia da Informação do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão), Paulo Lima (diretor executivo da RITS), Maurício Falavigna (jornalista, representante do projeto Sampa.org) e Yuri Brancoli (gerente de projetos da Secretaria de Logística e Informação). Em seguida, o documento ficará disponível na Internet para consulta e comentários. Rodrigo Assumpção se disse satisfeito por ver que alguns conceitos estão sendo cada vez mais difundidos. "Não dá para fazer governo eletrônico sem fazer inclusão digital; não dá para implantar um telecentro e achar que você fez alguma coisa; não dá para fazer uma ação de inclusão digital sem um foco na capacitação de pessoas – porque isso é uma ação principalmente de gente, não de tecnologia, não de botar máquina. O que está faltando, agora, é coordenar esforços para massificar isso". Considerar uma estratégia de capacitação para que comunidades e cidadãos façam o melhor uso da tecnologia foi também uma proposta apresentada pelo diretor-executivo da RITS, Paulo Lima, na sessão plenária inicial. "É preciso traçar um marco zero, abrir uma ampla discussão sobre monitoramento e avaliação. E é indispensável que a sociedade civil seja ouvida. Nesse sentido, a RITS está trabalhando para lançar em breve o portal do Observatório de Políticas Públicas de Infoinclusão, que será um espaço de avaliação e monitoramento das ações em curso no país". Paulo Lima sugere que o modelo brasileiro não deve ter a relação de microcomputadores por domicílio como principal indicador de avaliação. Ele defende a instalação de laboratórios de informática com acesso à Internet nas escolas públicas, com uma estratégia de uso público fora dos horários das aulas, bem como a instalação de pontos de acesso à Rede Mundial de Computadores nas bibliotecas públicas e uma política de fomento à proliferação de telecentros comunitários públicos e gratuitos. "Isso é fundamental para se aplicar uma política pública que seja eficiente na redução agressiva e consistente de mais esta forma de exclusão social, que é a impossibilidade de acesso à informação e a novas possibilidades de trabalho e renda", afirma. Carlos Afonso, diretor de Tecnologia da RITS, lembra ainda a parcela da população que, embora socialmente incluída, não está digitalmente incluída. "Temos o caso das pessoas da terceira idade, que têm possibilidades de acesso, mas para as quais não existe uma política clara", lamenta. "É preciso dar às pessoas a possibilidade de uso dessas ferramentas para seus fins. E, em termos políticos, você pode fazer um governo muito mais democrático com a tecnologia". Outro ponto fundamental, para Paulo Lima, é o incentivo à geração de conteúdos que tenham o cidadão como ponto focal, seja para sua informação ou para sua forma de expressão livre e democrática. Paulo cita os telecentros comunitários do município de São Paulo como uma experiência-modelo a ser reproduzida em outras realidades brasileiras. Presente à sessão de abertura, o ministro Tarso Genro, da Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Social, declarou que fazer inclusão digital não é apenas dar acesso às novas tecnologias, mas "incentivar a socialização da informação e do conhecimento", assegurando que é meta do governo integrar os processos sociais, econômicos e tecnológicos para permitir a inserção do povo brasileiro na chamada Sociedade do Conhecimento. Uma idéia "à prova de futuro" Em paralelo à relevância do aspecto conceitual, as tecnologias despertaram grande interesse da platéia – estimada em cerca de mil pessoas diariamente. A tecnologia sem fio (wi-fi), cujo custo se reduziu significativamente nos últimos anos, é apontada como uma solução interessante para a conexão de pequenas comunidades, em lugares com pouca infra-estrutura. De outro lado, a TV digital foi citada pelo subsecretário de Planejamento e Orçamento do Ministério das Telecomunicações, Marcos Dantas, que destacou a possibilidade de um canal de retorno para o espectador interferir no que está acontecendo na tela, gerando uma interatividade real – e não apenas um leque de opções muito maior. "Aí talvez a gente possa pensar em uma visão de inclusão social, democrática, de participação da sociedade na construção de projetos políticos que interessem a todos, e não apenas uma visão de mercado". Nelson Simões, diretor geral da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), trouxe a proposta de um modelo de rede comunitária criado a partir de um condomínio de organizações interligadas por fibra óptica. Em vez de alugar serviços de telecomunicação, a idéia é que se faça um investimento inicial maior em infra-estrutura, pois o custo de manutenção é muito mais baixo. Segundo ele, seria uma opção "à prova de futuro", já que os ajustes necessários para adaptar uma rede de fibra óptica às eventuais evoluções na velocidade de transmissão de dados seriam mínimos. E esse condomínio seria um patrimônio das próprias organizações. "Nossa proposta é integrar os telecentros, aproveitar a rede de fibras ópticas ociosa, ampliá-la, profissionalizar o suporte técnico e reconhecer as lideranças locais, envolvendo universidades, empresas públicas e centros de pesquisa". Em relação a softwares, já existe uma diretriz clara do governo de incentivo ao uso de softwares de código-fonte aberto (programas que podem ser livremente distribuídos, estudados, modificados e aperfeiçoados, ao contrário dos softwares proprietários, que já vêm em formato pronto, não podendo ser alterados). Um dos projetos já iniciados é o de uma rede de telecentros na Amazônia que será desenvolvida exclusivamente com softwares abertos. Recentemente foi criada uma Câmara de Implementação do Software Livre dentro do Comitê de Governo Eletrônico. Segundo o diretor-presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação, Sérgio Amadeu da Silveira, uma das atribuições dessa câmara é "organizar um plano de migração das várias soluções e dos sistemas usados pelo governo para, na medida do possível, com toda a segurança, a gente conseguir colocar o código aberto". Rodrigo Assumpção, que também é secretário executivo do Governo Eletrônico, mostra-se mais comedido: "É uma diretriz de governo estimular o software livre, mas tem de ser um uso conseqüente, responsável, que atenda às necessidades operacionais do Estado e também estimule um desenvolvimento de conhecimento no espaço brasileiro". No debate do qual participou com Silvio Meira, professor da Universidade Federal de Pernambuco e cientista-chefe do Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (Cesar), Sergio Amadeu acha que as tecnologias não são neutras e podem gerar ainda mais desigualdade. "Elas têm sido usadas para a manutenção do poder, mas também podem ser usadas para libertar", afirmou, ao defender as soluções de código-fonte aberto como potenciais geradoras de benefícios coletivos. "O saber compartilhado é essencial para a democratização do conhecimento. As linguagens básicas de comunicação não poderiam ser apropriadas por ninguém", afirma. Defensor da idéia de que inclusão digital deve ser política pública, Sérgio Amadeu destaca a importância de conectar todas as escolas, criar telecentros e formar todos os professores – "porque máquina não é nada sozinha", alerta. Na mesma linha, Silvio Meira advertiu: "Não esperem que inclusão digital venha pelo lado de business, porque não vem. Isso é muito mais política pública. E tem de ter educação, conectividade e oportunidade, senão não chega a lugar nenhum". Meira pondera que o software aberto tem riscos e oportunidades e que a tecnologia não vai resolver nada sozinha. "O problema é de inovação, tem a ver com a mudança de comportamento das pessoas, inclusive na elaboração de políticas públicas. Não acredito que a gente vá reverter os modelos de negócio de mercado que estão vigindo hoje nas próximas cinco décadas. Acho bom a gente pensar, simultaneamente, em como competir fora desse escopo e como se capacitar para competir dentro desse escopo. Tapar os olhos e fingir que não está acontecendo nada ao nosso redor vai redundar em mais uma década de atraso". "Dupla cidadania" Professor de Ciência Política do Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (Iuperj), José Eisenberg chamou atenção para os riscos que pairam além de polêmicas sobre hardwares e softwares, quando se discutem os serviços de Governo Eletrônico. "Quanto mais se avança nesse sentido, cria-se uma situação em que alguns têm acesso ampliado e outros são cada vez mais excluídos. O grande desafio é essa 'dupla cidadania': os que já estão incluídos e os que ainda não têm acesso". Para Eisenberg, o problema central é discutir o que oferecer primeiro, criar uma agenda de implementação de serviços eletrônicos elaborada coletivamente por Estado, sociedade civil e setor privado para determinar o que pode estar disponível eletronicamente. Outro aspecto importante, acrescenta, é uma normatização que permita a integração entre os sistemas – que muitas vezes não "conversam", tornando-se improdutivos. Rogério Santanna, secretário executivo de Logística e Tecnologia da Informação do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, lembrou alguns casos de sucesso do Governo Eletrônico, como a declaração de renda através da Internet e o sistema de licitações, mas admitiu que havia um direcionamento para que tipo de sistemas seriam privilegiados. "Os sistemas que funcionam bem são os que controlam a vida do cidadão, até porque já havia uma grande base de dados. O mesmo não ocorre com os sistemas de saúde ou de pagamento de benefícios". Santanna sugere que se revejam os projetos de Governo Eletrônico a partir da ótica dos cidadãos, mas admite que isso não é possível sem que se expanda a base de acesso. "Hoje temos algo em torno de 26 milhões de pessoas com conta bancária e acesso à Internet. Mas são cerca de 50 milhões abaixo da linha de pobreza. Ou seja: o número de absolutamente incluídos é a metade dos absolutamente excluídos". Para o secretário, a forma mais eficiente de se fazer um programa de inclusão digital no país é com ampla participação da sociedade civil organizada. "Programas como os telecentros são importantíssimos dentro de uma política de saúde ou de educação. Há ONGs nas periferias que conhecem muito melhor do que o Estado os problemas dessas comunidades e fazem muito mais do que o Estado. Não há como fazer uma política de Governo Eletrônico sem uma política de inclusão digital. A pior exclusão que se pode fazer a qualquer pessoa é a exclusão do conhecimento. A exclusão digital é a filha mais nova da exclusão social". Apropriação da tecnologia O papel dos telecentros comunitários nas estratégias de inclusão digital foi tema de um dos 15 grupos de trabalho organizados ao longo do evento para debater e formular propostas a serem apresentadas ao governo e à sociedade. Diariamente, antecedendo os debates, os resultados dos grupos de trabalho eram divulgados. E impressionavam os demais participantes pela seriedade e pela minúcia. Marta Gil, gerente da Rede SACI, estava feliz por participar do que chamou de "a realização de uma utopia". "A minha impressão é de um trabalho sério, consistente, que o pessoal trabalhou mesmo. E fiquei feliz porque o tema das pessoas com deficiência aparece. Na verdade, ele perpassa toda a temática. Cada vez que se fala em inclusão digital, elas deveriam ser consideradas o tempo todo, porque a gente está prevendo que no mundo virtual, assim como no real, cada vez que a gente tem um local acessível pras pessoas com deficiência, ele vai ser acessível pra todo mundo". Emocionada, Marta Gil assistiu com entusiasmo e lágrimas nos olhos à troca de idéias entre o representante do Ministério da Cultura, Cláudio Prado, e o professor Nélson Pretto, diretor da Faculdade de Educação da Universidade da Bahia, que encerrou o último dia de debates. Cláudio falou que a sociedade brasileira precisa "saltar do século 19 para o 21" e disse que é preciso "plugar as culturas locais". Nélson foi além: defendeu maior integração entre escolas e a sociedade civil e falou em reeducar os educadores. "Está havendo uma pedagogização de processos. O professor tenta transformar o uso das tecnologias em 'coisa séria'. Não há espaço para jogos, chats... É claro que o aluno não vai suportar. Ele vai pensar: 'Estão usando a tecnologia para me empurrar as mesmas coisas'. Enquanto isso, o filho dos ricos aprende a usar a tecnologia jogando e ouvindo MP3. Quer dizer: fora da escola, tenho prazer; do outro lado, não. É uma esquizofrenia". E concluiu: "Não podemos nos limitar à idéia de computador como ferramenta. Tem que atuar em redes e ter conexões entre as diversas possibilidades que o digital nos entrega de bandeja. E poderia nem ter a palavra digital, porque é muito mais do que isso. É como disse o Nelson Simões: a construção de uma nação à prova de futuro". fonte: http://tamarindo.rits.org.br/notitia/servlet/newstorm.notitia.apresentacao.ServletDeSecao?codigoDaSecao=3&dataDoJornal=atual |